Chegámos a casa nos finais de Abril, debaixo de uma chuvada torrencial. A Lídia e eu corremos a ir buscar os baldes para recolher a água, que nunca se sabe quando é que a canalização falha outra vez, acabam-se as tecnologias, acaba-se tudo. Esperamos que a chuva pára antes de descarregarmos, mas não pára, e a nossa mãe anda irritadamente pela sala a murmurar para si própria, “lá no Alentejo de certeza que não está a chover”. Nós deitamo-nos no sofá enroscadas em mantas, não queremos saber do Alentejo para nada, nós gostamos é de estar em casa e o nosso pior pesadelo é quando o nosso pai anuncia que está a chegar o dia de partir. O Henrique também está impaciente, quer sair de casa, ir ver os amigos (ou, mais exactamente, a Helena), mas os meus pais não vão deixar, não com a chuva que cai, as ruas estão todas enlameadas e ele ainda escorrega e parte uma perna. É ridículo, tudo isto é ridículo, os meus pais não estão preocupados com o meu irmão, não querem é que ele vá ver a namorada, e no Alentejo também está a chover, que saímos de lá há três horas e o céu estava carregado de nuvens, a minha mãe é que não gosta de voltar para casa porque perde o controlo do meu pai.
O Henrique acaba por se escapulir, em que bela figura chegará a casa da rapariga, molhado e enlameado, o meu pai amua e vai-se enfiar na cozinha com uma garrafa na mão, a minha mãe vai para o quarto descansar, a Lídia adormece no sofá e eu refugio-me no meu quarto. O meu quarto é virado a Norte, é a divisão mais fria da casa, por isso os meus armários têm mais mantas do que roupa, mas é maior do que o dos meus pais. Tenho espaço para toda a tralha a que chamo as minhas coisas e que não tem qualquer outra utilidade para além da estética e mesmo essa é fraca. Esta tralha consiste de objectos que um dia foram modernos, depois passaram a antiquados e neste momento são tecnologia muito mais avançada do que a que usamos mas inúteis porque a pouca electricidade que há está confinada aos espaços públicos que mais a necessitam, como hospitais, ou pelo menos é o que se pensa, porque eu sei que não é bem assim.
Tranco a porta, o que se passa no meu quarto não é para ser sabido lá fora, desvio o tapete e abro o alçapão que estava por baixo. Inchou com a chuva, está perro e faz barulho quando o puxo, mas ninguém dá por nada, cá em casa cada um só quer saber de si. Lá dentro há luz, há sempre luz, é a magia eléctrica. Desço pela escada junto à entrada que está velha e range debaixo dos meus pés, mas a descida é curto, três ou quatro degraus e estou no chão. Não me preocupo em fechar o alçapão, a fechadura do meu quarto é tão resistente que é mais fácil fazer um buraco na porta do que arrombá-la.
Estou virada para a parede e nem preciso de olhar para saber que a câmara está focada em mim e que já estão palavras no ecrã que ilumina a cave minúscula. Viro-me para a máquina e lá está, tudo branco excepto para umas letras azuis, Olá, Matilde, bem vinda, está à espera da minha resposta, também ninguém o manda falar enquanto ainda não me aproximei do teclado. Avanço para ele e escrevo, Olá, voltei, como estás? , é um bocado foleiro, temos cada um uma corzinha, e provavelmente também é um bocado ridículo perguntar a uma máquina como está, mas esta é uma máquina com nome de humano e com uma espécie de inteligência que nunca compreendi. É um PAICB, o que significa Personalized and Artificially Inteligent ChatterBot, ou seja, é um computador que fala connosco. Tem uma câmara, já tinha falado dela, e utiliza-a para nos “ver”. É um bocado assustador. Se calhar isto não passa de uma conversa online, um louco qualquer a olhar para mim do outro lado e eu às escuras, mas não é fácil, a internet deixou de existir, pelo menos tanto quanto sabemos.
Estou como sempre, na tua cave não muda nada, e tu? Como foi a viagem?
Como as outras. Um bocadinho mais de neve, um bocadinho menos de chuva, está a ficar cada vez mais frio. É bom estar em casa.
segunda-feira, 31 de maio de 2010
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2 comentários:
Gostei!!! Fez-me lembrar O Dia Depois de Amanhã misturado com o Eu Sou a Lenda O.o. Certamente não foi a tua inspiração. Mas está muito bom.
actualizas menos o teu blog do que eu actualizo o meu tumblr. :'D
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